11 de dezembro de 2021

Uma imagem mente mais do que mil palavras

 

Desde 1957 que estamos enchendo os céus de entulho. Hoje temos quase 9.000 satélites e 23.000 outros objetos orbitando a terra. E vai piorar com a iniciativa privada: só as Starlinks colocaram 300 satélites em órbita entre 2019 e 2021 ( para aumentar a capacidade da internet). Estima-se que até 2028 teremos 15.000 satélites orbitando a terra.

É um problema sério? É. Não só porque estamos enchendo o espaço de lixo, mas também podem voltar e cair sobre nossa cabeça (o grande medo da turma do Asterix). Mas a imagem, apesar de pedagógica, é enganadora.

O primeiro problema é o tamanho dos satélites. Tirando as duas estações espaciais (a internacional e a chinesa), o maior satélite hoje em órbita é o Sentinel 6A, lançado em 2020 para medir com precisão as mudanças de altura dos oceanos. 

Desenho representado o satélite Sentinel 6A
Essa casinha dourada é mais ou menos do tamanho de uma caminhonete - mede 5,13 x 4,17 x 2,34 m. Comparando sua maior medida com o diâmetro da terra temos

 
ou seja, nada em comparação com a terra! Agora pense em 0,0000004 do diâmetro da terra no desenho!
Esses pontinhos brancos são muito grandes. Se todos os equipamentos e entulhos fossem do tamanho da Sentinel 6A e colocássemos todos enfileirados daria 0,0036 do diâmetro da terra.

O segundo erro da imagem é que se fosse como no desenho, basicamente a gente não conseguiria mais ver o céu. Na verdade, o espaço é bem vazio. Os satélites mais baixos orbitam a 500km da superfície da Terra e os mais altos, como os do GPS, a 35.000 km. Então, os 9.000 satélites mais os 23.000 outros equipamentos, orbitam numa casca entre 500 e 35.000 km que dá um volume de

A densidade de equipamentos será então de 
ou seja, esperamos encontrar um equipamento em cada volume de 1000 km por 1000 km por 10000 km. Nada a ver com o desenho, não é?
 
Mas atenção: o desenho ser falso não quer dizer que devemos nos despreocupar com a lixarada que estamos colocando no espaço. Os que estão em órbitas baixas, entre 500 e 600 km, acabarão caindo de volta. Os outros ficarão lá para sempre. E vai chegar uma hora que sim, estaremos como na imagem, o céu entulhado de lixo espacial já obsoleto. E quando precisarmos de novos satélites para fazer funcionar nossos Waze, WhatsApp ou Facebook, não haverá mais espaço para colocá-los.


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Este texto foi inspirado na entrevista dada por Pierre Barthelemy ao podcast L'Heure du Monde, publicado no jornal Le Monde em 26 de novembro de 2021.
As fotos foram tiradas do site da Khan Academy e da página do ESA (European Spatial Agency).





28 de novembro de 2021

A área de um círculo é mesmo a decoreba "Pi R 2"?


Michael Lynch, na conferência The Democratic Value of the Truth, disponível no Youtube, diz que hoje em dia recebemos muita informação e que, de alguma maneira, decidimos quais são verdadeiras. Em geral, consideramos verdadeiras as que vem de fontes que acreditamos serem confiáveis.

Mas quando se trata de resultados matemáticos, por exemplo que a área de um círculo é πR2, tomamos como verdades sem maiores questionamentos. Será que é porque a fonte é o/a professor/a, autoridade inquestionável? Ou será que é porque a fonte é um/a professor/a de Matemática? Fonte sempre confiável? Não sei. 

Me parece mais que a matemática é vista, e apresentada, como coisa obscura, cheia de fórmulas sem significado e que devem ser decoradas. Um A = πR2 não precisa ser verdade nem deixar de ser.  A = πR2 simplesmente é. E é isso que cai na prova.     

No entanto, se olharmos a história, veremos que a coisa nem sempre foi assim. A unidade de medida de área é um quadrado de lado 1. E qualquer outra área é definida a partir deste quadrado, observando quantos (ou quantas partes) deste quadrado unitário cabem dentro dela. Do quadrado tiramos a área do retângulo, da do retângulo a do triângulo e a partir daí de qualquer polígono. 

Mas um círculo não se compara com quadrados!! Isto não é lá bem verdade. Euclides, por volta de 300 aC, prova que dados dois círculos C1 e C2 de raios R1 e R2 então a razão entre suas áreas é a mesma que a razão entre as áreas dos quadrados de lados R1 e R2, ou seja uma área está para a outra assim como a área de um quadrado está para a outra.

Euclides não chegou a este resultado medindo vários círculos. Nenhum resultado de Euclides, na verdade, envolve medidas. 
Para provar este resultado, Euclides primeiro usa uma observação de Antifonte (480–411 aC) de que podemos inscrever polígonos regulares em um círculo com o número de lados que quisermos.
Euclides prova então que quanto maior o número de lados, mais a área do polígono se aproxima da área do círculo. Mas um círculo não é um polígono e por mais parecida que a área seja, nunca terá o valor da área do círculo.
 
O próximo passo de Euclides foi mostrar que se temos dois círculos C1 e C2 de raios R1 e R2 e se P1 e P2 são dois polígonos com o mesmo número de lados, inscritos cada um em um dos círculos, então a razão entre suas áreas é a mesma que a razão entre as áreas dos quadrados de lados R1 e R2 ou seja 
 
Usando estas ideias Euclides prova que a razão entre as áreas dos dois círculos não pode ser nem maior e nem menor do que a razão entre as áreas dos quadrados. Logo terá que ser igual. E Euclides para por aí. 
 
Arquimedes, mais de 50 anos depois, é que vê que podemos comparar diferente
e este resultado quer dizer que existe um número que vale para qualquer círculo, isto é a área(C)/Rdá sempre o mesmo número, independentemente de quem é o círculo C, ou seja área(C) = número × R2
E este número só foi se chamar π no século XVII.


A conferência de Michael Lynch pode ser vista em link

A prova de Euclides pode ser vista no livrinho A área e o perímetro de um círculo, escrito por mim para o I Colóquio Regional de Matemática da região sudeste.

As imagens dos polígonos foram tiradas do texto Fórmulas de áreas através de recortes de Daniela S. Hoffmann e Maria Alice Gravina.

 



 

30 de outubro de 2021

As frações egípcias


Em 1858, o escocês Alexander Henry Rhind, comerciante, estudioso e colecionador de antiguidades, comprou no Egito um papiro datado de cerca de 1550 aC (possivelmente fruto de pilhagens em sítios arqueológicos). 

    Poucos anos depois Rhind faleceu de tuberculose e o papiro - agora chamado de Papiro de Rhind - foi comprado pelo British Museum, onde se encontra até hoje, mas infelizmente fora de exposição. Na ilustração abaixo vemos um pedacinho deste papiro.

    Não chegaram até nós muitos papiros. Afinal, eram feitos de matéria orgânica e logo biodegradáveis. Que tratassem de matemática, então, sobraram pouquíssimos. O papiro de Rhind é uma dessas exceções: contém vários e vários problemas e suas soluções, e várias tabelas. Uma delas, dentro do problema 61, nos conta a maneira engenhosa como os antigos egípcios trabalhavam com frações.

    Para eles, toda fração, se não tivesse numerador 1, se escreveria como uma soma de frações com numerador 1, que hoje chamamos de frações egípcias. Por exemplo, 5/8 seria 1/2+1/8. 

    Na tabela do problema 61, eles colocaram todas as frações egípcias do tipo 2/n, com n ímpar indo de 3 até 101. Na nossa notação com algarismos (hindu)-arábicos, a tabela ficaria assim:

Impressionante, não é? Mas por que os egípcios resolveram trabalhar assim com as frações? E como conseguiram montar esta tabela? No Papiro de Rhind não encontramos nenhuma explicação.  

    Se olharmos a maneira como representavam os números, poderemos perceber a genialidade deste tratamento da divisão. A notação numérica dos egípcios era bastante simples. Tinham símbolos em hieróglifos para 1, 10, 100 até 1.000.000: 

   
Usavam a base 10 e combinações destes símbolos para formar os outros números (que chamamos de notação aditiva). Por exemplo
quando escrito do maior para o menor, como fazemos hoje, mas também podiam inverter, o que causava uma certa confusão.

    Este jeito de anotar números é ótimo para somas e subtrações. Basta ajuntar os iguais e ver quantos são. Para multiplicar eles usavam a propriedade distributiva e tinham tabelas que ajudavam bem.

    Já para dividir, a coisa se tornava um inferno…  Experimente fazer a divisão

sem usar o nosso algorítmo da divisão e sem máquina de calcular, claro!

    Isto sugere que eles tenham inventado as frações egípcias para resolver este problema prático.

    Na verdade, como não estamos acostumados, este jeito de trabalhar parece estranho, mas pode ser muito útil: por exemplo, se você tem 5 pizzas para dividir entre 8 pessoas, divida quatro das pizzas ao meio e a quinta em 8 partes e dê um meio e um oitavo de pizza para cada um (1/2+1/8=5/8). 

    Como os egípcios fizeram esta tabela, bem, isto já é meio que um mistério. Nos papiros só tem enunciados de problemas, todos numéricos, solução dos problemas e tabelas…. Não tem fórmulas nem métodos gerais. 

    As frações egípcias continuaram a serem usadas na Grécia e até mesmo na Idade Média. Decomposições em frações unitárias são encontradas nos livros do matemático hindu Mahavira, no século IX. O italiano Fibonacci, um dos incentivadores do uso dos nossos algarismos (hindu)-arábicos pelos comerciantes europeus, descreve e estuda as frações egípcias em seu Liber Abaci, de 1202.

    Hoje em dia não usamos mais frações egípcias em contas e aplicações. Afinal, computadores e maquininhas de calcular fazem todas as contas por nós. Mas os matemáticos que pesquisam em Teoria dos Números continuam interessados nelas. Segundo o Web of Science, um catálogo de artigos publicados nas principais revistas científicas, na área de Matemática temos 67 artigos sobre frações egípcias a partir de 1971, sendo 3 agora  em 2021.      

    Para os curiosos, eis algumas fórmulas para calcular frações egípcias em casos especiais:

se p é primo :  2/p = 1/((p+1)/2)+1/(p(p+1)/2)

se p e q são primos: 2/pq =  1/(q(p+1)/2)+1/(pq(p+1)/2) 

    E muitas outras existem. Na internet é possível encontrar várias. Mas não sabemos quais delas os egípcios realmente usaram, se usaram...