18 de julho de 2013

Porque o seno se chama seno


Em qualquer triângulo retângulo que tenha um ângulo medindo x graus, a divisão do comprimento do cateto oposto ao ângulo (b) pelo comprimento da hipotenusa (a) dá sempre o mesmo número. Quando isto acontece e a conta é útil em muitos problemas práticos ou teóricos, o número ganha um nome para facilitar a vida. Neste caso em questão, o nome dado foi seno. 
Um outro jeito de calculá-lo é tomar, num círculo de raio 1, um ângulo medindo 2x graus. O seno de x será a metade da corda  AB, determinada pelo ângulo. Esta foi a maneira usada pelo astrônomo e matemático hindu Aryabhata (476-550 d.C.) para construir a primeira tabela de senos de que temos notícia. Mas ele não chamou o seno de seno. Chamou de "ardha-jiva" que quer dizer meia corda em sânscrito. Com o tempo, o nome foi abreviado para jiva e nos textos árabes se transforma em jiba (será que vem dos mouros a mania portuguesa e espanhola de confundir b e v?).
A partir do século XI, a Europa cristã passa a ter acesso aos textos árabes e os monges começam suas traduções para o latim. Me contaram que essas traduções eram feitas, pelo menos no começo, a seis mãos: sentavam-se uma pessoa que soubesse árabe e o romanço local (um comerciante judeu em muitos casos), um monge (que conhecia o romanço e o latim) e um outro monge, que era o escriba. Quem sabia árabe lia em voz alta o texto, já traduzindo para o romanço. Um monge escutava e repetia em voz alta em latim e o outro anotava o que era dito em latim. Imaginem a quantidade de erros que isto produziu!
Voltando ao nosso seno, em árabe nem sempre se explicita a posição das vogais numa palavra. Assim jiba, que não quer dizer nada em árabe, se escreve igual a jaib, que quer dizer baía, cavidade, curva. Nessa confusão da tradução a seis mãos, o primeiro achou que era jaib e o termo acabou sendo traduzido em latim por SINUS, que quer dizer curva, dobra (em português temos o adjetivo sinuoso, que deriva de sinus). Nossos textos científicos, muito posteriormente, vão aportuguesar o termo para seno.






19 de maio de 2013

O Susto dos Pitagóricos

Uma reta é um conjunto de pontos enfileirados sem começo nem fim. Um segmento de reta é um pedaço da reta começando em um ponto e terminando em um outro ponto. 
A ideia que vem à cabeça, então, é que um segmento de reta é assim como um colar de contas, um ponto enfiado atrás do outro, enfileirados do primeiro ao último. 

Era assim que pensavam, parece, os pitagóricos (membros de uma mistura entre seita, escola e comunidade, criada por volta de 530 a.C., em Crótona, no sul da Itália). E, por pensar assim, vão se meter na maior enrascada lógica!
Ora se um segmento é uma fileira de pontos, seu comprimento tem que ser proporcional ao número de pontos que contém. Isto é, se um segmento tem m pontos, seu  comprimento L será m vezes o tamanho de um ponto.
Tomando dois segmentos, um de comprimento L com m pontos e outro de comprimento C com n pontos então a razão entre os comprimentos é                                   LC=m×tamanho do ponton×tamanho do ponto=mn

Veio então o grande golpe contra a Escola Pitagórica. Eles conheciam o que chamamos hoje de Teorema de Pitágoras. Este resultado já era conhecido dos egípcios, pelo menos no caso 3,4,5 e dos babilônicos, que possuíam tabelas de números que verificavam a relação dada pelo teorema. Os pitagóricos também o conheciam, mas não se sabe como o demonstraram.


 Aplicando o Teorema de Pitágoras ao cálculo da diagonal do quadrado de lado com comprimento 1, temos que o comprimento D da diagonal deve verificar D2=12+12=2 ou seja, o comprimento da diagonal é 2.
Como a razão entre os comprimentos de dois segmentos é sempre uma fração então existem m e n números inteiros tais que                                     comprimento da diagonalcomprimento do lado=21=mn.

Isto não seria nada de mais se os pitagóricos não soubessem de um outro fato interessante.... Eles trabalhavam muito com números e repararam nos seguintes fatos:
  •  um número é par se for um múltiplo de 2, isto é, se m é par então, para algum outro número p,  m = 2p ;
     
  • seu quadrado então será  m2=(2p)2=4p2=2(2p2), isto é, seu quadrado também é um múltiplo de 2;
e podemos concluir que se um número é par, seu quadrado também é par.
Por outro lado, notaram que
  • um número é ímpar se for o seguinte de um par, isto é, se n é ímpar então n = 2q + 1, para algum número q ;
  • seu quadrado então será                        n2=(2q+1)2=4q2+4q+1=2(2q2+2q)+1, isto é, seu quadrado é o seguinte de um par; 
e podemos concluir que se um número é ímpar, seu quadrado também é ímpar.  
Dos dois fatos segue que se o quadrado de um número é par então este número tem  que ser par (pois se fosse ímpar seu quadrado seria ímpar e não par).
Voltando à diagonal do quadrado de lado 1, temos que 2=mn e podemos supor que m e n são primos entre si, pois senão dividiríamos em cima e em baixo da fração pelo fator comum. Vamos fazer então os passos seguintes: 
  •  Elevando tudo ao quadrado temos que 2=m2n2 dando 2n2=m2 e assim m2 é um número par. Logo, m é par e m=2p.
  •  Como m e n são primos entre si e m é par, o n tem que ser ímpar, pois senão 2 seria um fator comum. 
  • Mas 2n2=m2=(2p)2=2(2p2) e n2=2p2, ou seja, o quadrado de n é par e logo n é par e não ímpar, como tinha de ser. 
Isto diz que há algo de errado no começo deste raciocínio, ou seja, não está certo que 2=mn. Logo 2mn ou, numa linguagem mais moderna do que a dos pitagóricos, 2 é um número irracional (significando que não é uma razão entre dois números inteiros e não que é um número insensato, estouvado). 
Os pitagóricos deram de cara então com a diagonal do quadradoum comprimento que existe, que se pode desenhar e que não se encaixava na maneira como entendiam o ponto e a reta! Descobriram que  não podiam pensar num segmento de reta como um colar de contas. E isto foi uma verdadeira paulada na filosofia deles.

Mas e hoje, como entendemos um segmento de reta? É claro que a partir dos pitagóricos muita gente pensou sobre o assunto  e  sabemos que um segmento de reta tem que ter um número infinito de pontos (pois se tivesse só um número finito de pontos seu comprimento seria proporcional ao número de pontos e voltaríamos ao ponto de partida deste texto). Como é mesmo essa estrutura com infinitos pontos é uma longa história, cheia de ideias diferentes - algumas certas mas tão fora do comum como as do matemático russo Georg Cantor (1845-1918). Mas para contar isso tudo este post ficaria muito longo e deixarei estas ideias para uma outra vez.

14 de abril de 2013

O inventor dos fractais não tinha nariz

Gaston Julia, o inventor dos fractais, feriu-se seriamente lutando na I Guerra Mundial e acabou perdendo o nariz. Muito ruim para ele, que passou a maior parte de sua vida usando um nariz de couro, muito bom para nós: o tempo que passou se recuperando no hospital, usou para pensar em matemática e acabou criando o que chamamos hoje de Conjuntos de Julia, os primeiros exemplos dos belíssimos fractais. Os desenhos abaixo são alguns Conjuntos de Julia, tirados da página de Glenn Elert (http://hypertextbook.com/chaos/22.shtml).


Eles são construidos a partir de sequências de números da seguinte maneira: primeiro escolhemos um número complexo c.  Depois, para cada número complexo z construimos a sequência infinita de números
onde cada termo é o anterior elevado ao quadrado e somado com o c.
Para cada valor de z, a sequência só tem duas opções: ou ela vai se distanciando da origem (a sequência dos módulos vai tendendo ao infinito) ou os termos ficam zanzando por ali por perto da origem (o módulo fica limitado).
É esse comportamento que determina o código de cores das figuras. Um ponto z é preto se a sequência que ele determina fica ali por perto da origem. Os outros ganham cores em função da velocidade com que vão embora. O Conjunto de Julia, para cada c escolhido, é a fronteira entre a região preta e a colorida.
São lindos, não são? E se você quiser entender melhor estes conjuntos, assista aos capítulos 5 e 6 da excelente série de vídeos Dimensions de Jos Leys, Étienne Ghys e Aurélien Alvarez (http://www.dimensions-math.org/Dim_PT.htm).

29 de março de 2013

A Revolução Francesa e a receita do pão de queijo

O que a Revolução Francesa tem a ver com a história de Minas Gerais é fácil de descobrir - basta lembrarmos dos ideais de Tiradentes e seus colegas da Inconfidência Mineira. O que talvez não seja tão claro é o que ela tem a ver com a receita do pão de queijo.
Eu comecei a percebê-la quando li um livro muito bacana chamado A Medida de Todas as Coisas, escrito por Ken Alder. O livro conta a saga de dois astrônomos franceses que sairam a campo, subvencionados pelo governo, para medir o comprimento do meridiano que passa por Paris, durante os turbulentos anos da revolução na França.
Agora, para entender porque dois malucos foram financiados pelo governo para medir o comprimento do meridiano no meio da confusão que era a França naquela época (e o que isso tem a ver com o pão de queijo) temos que entender um pouquinho mais do que rolava por lá naquela época.
Antes da Revolução Francesa, a França contava com 250.000 unidades de pesos e medidas, pois cada nobre podia definir como as coisas eram medidas e pesadas na região onde ele mandava, tomando por exemplo como unidade de comprimento a largura da porta da igreja do vilarejo onde seu castelo ficava. Em agosto de 1789, com a revolução jurídica, a nobreza francesa renuncia a seus privilégios legais, incluindo aí sua autoridade sobre pesos e medidas. Aparece então uma enxurrada de propostas feitas por tudo quanto é cidadão interessado no assunto.
Para tentar resolver o problema foi criada uma Comissão de Pesos e Medidas (que era realmente de peso pois dela faziam parte grandes sábios como Condorcet, Lavoisier, Laplace, Borda e Le- gendre) que tinha como objetivo criar novas unidades de medida precisas e que fossem aplicadas uniformemente em toda a França. E mais, que estas novas unidades não dependessem de pessoas ou lugares específicos, mas que fossem universais, que pertencessem à humanidade como um todo. Daí, por exemplo, a ideia de definir a unidade de comprimento, o metro, como a décima milionésima parte da distância do Polo Norte ao Equador, ou seja, a décima milionésima parte de um quarto do comprimento total de um meridiano. E, por isso, os astrônomos Jean-Baptiste-Joseph Delambre e Pierre-François-André Méchain foram pagos para medir o comprimento do meridiano que passa por Paris e Barcelona (já que a terra é suposta ser uma esfera, todos os meridianos tem o mesmo comprimento e tanto faz qual você medir).
E onde entra a receita do pão de queijo nessa história? Ora, a receita tradicional, a que minha mãe me ensinou, tem como ingredientes: 3 copos de polvilho doce, 2 copos de leite, 1 copo menos dois dedos de óleo, 1 prato fundo de queijo minas meia cura ralado, 1 pitada de sal e 5 ovos pequenos ou 4 grandes. Se você não for mineiro e não tiver ajudado, desde pequeno, alguém a fazer um pão de queijo, duvidê-o-dó que você acerte de primeira nas quantidades que darão certo!
E, por fim, uma curiosidade: o distância do Polo ao Equador, medida hoje via satélite, é de 10.002.290 metros. Mas então o que é um metro?

16 de março de 2013

As decimais de π

Outro dia um amigo comentou que π é infinito. Fiquei encucada e pensei cá comigo: infinito é algo que toda vez que a gente acha que chegou lá, na verdade ainda não chegou. Sempre tem mais do que o que já se viu.
Ora um círculo de raio 1 pode ser inscrito em um quadrado de lado 2. Sua área, que vale π é menor do que a área do quadrado, que vale 4. Ou seja, π é um número positivo e pequeno, pois é menor do que 4. Não pode ser infinito !?!
O que tem de infinito no π é o número de casas decimais depois da vírgula. Podemos escrevê-lo com muitas casas decimais (no caso abaixo, com 85 casas depois da vírgula):
3,1415926535897932384626433832795028841971693993751058209749445923078164062862089986280

mas sempre existirão mais infinitas outras depois delas. E o que é ainda mais legal - não tem nada de repetido, como nas dízimas periódicas. Isto nos deixa meio frustrados, pois nunca conseguiremos escrever a expressão inteirinha de π! (lembre que as dízimas periódicas a gente também não consegue escrever, mas temos uma boa ideia exibindo a parte que repete).
Apesar de sabermos que nunca conseguiremos exibir π por inteiro, as pessoas continuam calculando mais e mais decimais de π. Kanada e seus colaboradores, por exemplo, calcularam 1.241.100.000.000 decimais de π em 2002. Em outubro de 2011, Kondo bate o recorde calculando 10.000.000.000.050 decimais.
Por que fazemos isto? Por um lado, calculamos porque podemos. Com computadores cada vez mais rápidos e potentes, pode-se calcular cada vez mais decimais. Também há o desafio de se “bolar” algoritmos cada vez mais rápidos e eficientes. O cálculo de 100.265 decimais de  π , feito por Shanks e Wrench em 1961, precisou de 105.000 operações aritméticas. Já o algoritmo inventado em 1984 pelos irmãos Borwein, obteve os mesmos dígitos com apenas 112 operações.
Uma vez que se tem bons algoritmos, eles passam a ser usados para testar e comparar o desempenho de novos softwares e computadores. Mas talvez o mais intrigante, contudo, seja poder ver se a conjectura sobre a distribuição aleatória dos dígitos na expansão decimal de π parece correta. O que se imagina é que um dígito tem a mesma probabilidade de aparecer na expansão de π do que qualquer outro. Assim, ao calcularmos as decimais deveríamos encontrar basicamente a mesma frequência para qualquer dígito e, que quanto mais casas decimais tivermos, melhor deve ser esta estimativa. Ora, em 1999, examinando 200 bilhões de casas decimais de π, Kanada e Takahashi obtiveram o seguinte número de ocorrências, que parece concordar com a conjectura:

Dígito                     Número de ocorrências
   0                               20.000.030.841
   1                               19.999.914.711
   2                               20.000.136.978
   3                               20.000.069.393
   4                               19.999.921.691
   5                               19.999.917.053
   6                               19.999.881.515
   7                               19.999.967.594
   8                               20.000.291.044
   9                               19.999.869.180